Janeiro

Consigo vislumbrar as montanhas ao longe, e cavalos animais sobrevoam os cantos da planície, há segredos escondidos por entre a rugosidade dos teus braços, como se fossem bocados de pessoas espalhados por entre os campos e as campas, as cidades, Há, assim, luzes que se acendem e se apagam ao mesmo tempo que me recordo dos castanheiros junto às dunas, Alentejos de emoções, Os castanheiros junto às dunas e a minha infância boiando em lagos encardados e circulares, circulares circulares, Corações, Agências matrimoniais e farmácias abandonadas,
- Profundamente
, por entre pesadelos, que paralelamente definidos e ao longo de quarteirões longínquos, longínquos, De maneira que consigo vislumbrar as montanhas ao longe, Há animais que correm na direcção ao rio, e, por uma vez, na direcção ao mar. Por entre um nevoeiro das recordações, poeiras e ventos que logram emocionar-me, Assim, Há cavalos que correm e, tristes, conseguem estender-se em danças que se esbatem a tempos iluminados, Poemas e uma casa abandonada, Palavras encaixadas por emoções perdidas e, assim, emocionantes, Palavras, Palavras, significantes vários, Assim, Consigo distinguir poemas que se desenham nos sorrisos alheios, Música, Assim, Notas, Silêncios,
- Silêncios
, ouvem-se sons suspensos nas paredes do meu quarto, Ouvem-se escombos circulantes que, por vezes, se adensam e repousam junto de mim e assim ficam, Incertos,
- Assim
, incertos e por vezes vivos como pessoas que gritam,
(Como pessoas que gritam)
, Há silêncios que caminham junto ao rio e se desfazem no mar, Dois homens gesticulam palavras, monossílabos verticais e com transparências movediças, cinquenta anos resumidos a gestos palavrosos e fugazes, Consigo distinguir por entre as multidões e as paisagens,
- Um mundo de Silêncios ainda é mundo
, há mundos silenciosos que se encobrem por entre as folhas de árvores e árvores devolutas. Verti a luz do teu nome, lentamente, visto-me a mim próprio com pedaços do teu corpo suspenso, longitudinalmente, ao longo de quilómetros e quilómetros de superfícies quadradas e perpendicularmente ajustadas transparentes. Vesti de sombra a tua alma, e assim, vorazmente, escondi pedaços do meu corpo nas sombras do teu, Conseguirias desfragmentar-te, unir o não-unível, Consigo recordar-me da tua morte como se ela fosse algo, Como se ela fosse algo, Alguma coisa, Tu, Cavalos e águias dançantes e oblíquas, Em voos oblíquos, Cavalos e águas e assim tristes e submersas conseguem dizer-te o quanto a morte é importante, Assim, leio poemas em voz alta tentando que cavalos longínquos se dirijam em lentidão, Se dissipem ao som das valsas do meu avô, Há, ainda, alentejos dispersos nas paredes do meu quarto, nas paredes da minha alma, almas dispersas e continuadamente, Segredos, Consigo desmontar o poema em fracções, e fracções Desintegrá-las em sombras e penumbras etéreas e silenciosas. Há alentejos escondidos pelos dedos do tempo, Assim, no silêncio das avestruzes, Continuadamente deitado observo as aves e as cortinas vislumbrando as montanhas ao longe, cavalos sobrevoam os cantos da planície e adormeço no pleno açúcar desta harmonia.
- Assim
, há carros que percorrem os silêncios da rua ao fundo, da minha e da tua rua, quarto carros brancos de onde saem pessoas animadas por energias descobertas em entranhas esquecidas, rascunhos humanos que se esvaem por segredos e melodias imaginadas, misturadas com vozes de avós profundas, profundamente escondidas nos silêncios de séculos e séculos de poesia e de ilusão.
A voz do médico,
- Um menino.
A voz do médico a ecoar cá dentro. Ontem como hoje. Como sempre. Ou aquilo a que nos habituámos a chamar sempre.
E as minhas mãos duras do trabalho a querer agarrar-te todo, sem te deixar cair. Cavalos de corrida selvagens a galopar pelas florestas do meu sentir. E de repente o coração, um relógio a que é preciso dar corda. E as tuas mãos a rodar os meus ponteiros, a acertar-me os segundos, a compassar-me as batidas.
Ela sorri. Naquele dia ela sorri. O seu rosto congelado na minha memória. Depois disso não sei se houve amanhã. Depois do amor talvez nunca exista ou possa existir amanhã.
Ensinei-te que as palavras são sempre palavras, digas o que disseres. As palavras como planícies, segredos inaudíveis, retratos da mais pura solidão.
As palavras ainda a secar-te por dentro, a comer-te devagar. E eu com vontade de dizer-te que as deixes correr. Maratonas dentro de ti. Corrida de fundo em coração aberto.
Sentas-te. E de repente tu - todas as vozes, todos os cheiros, todas as pessoas que conheci. De repente tu – todas as histórias que contei, todas as vidas que não quis ou não pude viver.
Apenas tu. Como naquele dia no hospital em que as mãos me tremiam. Como no dia em que nasceste em mim. Feito de silêncios, de ausências, de medos, feito de palavras.
Feito de todas as palavras. Feito do vazio – do teu e do meu - do nosso vazio.
O vazio percorre os cantos da planície e quase consigo descrever os silêncios que se lhes cobrem, Quase despido dos corpos que lhe cobrem o corpo, Há, ainda, vozes a ecoar dentro dele, Sempre e até ao,
- Até ao infinito
, ou aquilo a que nos habituámos a chamar sempre, Mãos devolutas e cinzentamente escurecidas pelo passar dos dias e dos anos, Dias e silêncios profundos, Caminham junto ao rio cavalos submersos, e planícies profundas, segredos inaudívies, mudos, Há, assim, corações abertos e vozes que ecoam que por vezes,
(acredite no que lhe digo)
, por vezes não consigo dormir porque vozes inaudíveis me povoam o corpo, e os corpos que se lhe sobrepõem, Há mundos silenciosos e apenas tu, inerte e encoberta pelos ganidos e pelos plátanos do chafariz,
- Assim,
(acredite)
, há palavras que lhe comem o corpo, e o corpo que lentamente se desfaz, Todas as vozes, todos os cheiros e todas as pessoas que lhe encobrem a visão, Há, ainda, segredos desconhecidos como histórias que esvoaçam, Vinte e oito de Outubro, noite de hospital, uma ligeira linguagem de movimentos, dançantes, Alentejos profundos e cavalos brancos que vagueiam, O vazio. Outubro. Chuva no ar. Cheira-se.
Estamos todos tão sós. E tu prometes que ficas até ao fim. Dizes qualquer coisa acerca do amor. Abro os olhos. Como se ainda te visse. Como se ainda te pudesse ver. Esperas palavras e eu não sei como dizer-te que as minhas secaram.
Seguras-me na mão. Vinte e oito de Outubro de um ano qualquer. O médico aproxima-se e eu tenho vontade de me afastar, de me desprender da cama e correr como um cavalo selvagem. Correr para ti e por ti. Correr.
Nem que seja para dizer-te que não esqueci. Que não esquecemos nunca.
Fecho os olhos. E de repente tu. Todos os dias. Dia por dia. E a vida uma ampulheta que se esgota devagar. A vida sempre em contagem decrescente. Depois das palavras. A vida sempre em contagem decrescente. O silêncio. Em contagem decrescente.
3.2.1. Espero a tua voz. Qualquer palavra que me diga que não estou só, qualquer ilusão que me faça acreditar que vens comigo. Que vens comigo mesmo que seja longe.
Mesmo que cavalos submersos se mergulhem nos mares do Outono, Há, contudo, um cheiro longínquo que me faz recordar o passado que ainda não vivi, viverei talvez, Assim, há alegremente um conjunto de paragens de autocarro, farmácias abandonadas e hospitais moribundos, Será assim o meu futuro, Quarenta hospitais moribundos circulados por paragens de autocarro e farmácias abandonadas,
(estou certo)
, circundam-me vestígios de álcool e sorrisos que não me pertencem nem nunca me pertenceram, Talvez com esforço consiga percorrer os caminhos que me conduzem ao café do bairro, ao mercado, cheiro a canela e a desejo, Desejos, quatro bicicletas entrelaçadas como gibóias encarnadas e da cor das coisas que têm tempo, ali estão todas ligeiramente dançantes, Ao mesmo tempo que as observo recordo os silêncios que me cobrem, estantes com livros e o cheiro de acordes infindos que, por vezes, te escondem e te transportam até ali,
- Até ali
, no fundo,
(bem lá no fundo)
, transportam-te até aqui e quase sinto que anos são dias, Cavalos submersos mergulham em mares de Outono, Invernos sorriem.
Os teus silêncios. Como pessoas que gritam. Como vozes que me dizem,
-fica,
Quando nós nunca sabemos se podemos ficar. Quando nós nunca somos suficientemente fortes para não chorar.
Falas-me de cavalos em direcção ao mar. ao mar. ao mar.
E eu não sei se devo acreditar que um dia haverá mar suficiente para tantos cavalos. Mas fico. Finjo que acredito. Em cavalos furiosos, como as vozes dos médicos quando sentem o medo a apertar-lhe as têmporas, cavalos velozes, como as palavras que não podem nem sabem chegar devagar.
Farmácias abandonadas. Tão abandonas e tão tristes como os nossos corações em tardes de Outono. Como as árvores sem folhas. Como o meu rosto quando me dizes,
- quem és? ,
E eu tenho vergonha de não saber ao certo quem foste.
Abandonado. Como as farmácias. Furioso. Como os cavalos. Veloz. Como as palavras.
Assim sou eu. Mesmo que amanhã duvides que o hoje possa ter existido.
- Quem és?
, não sei responder porque há cavalos que se animam nos choupos, Continuadamente espero que os dias se alegrem, tornando-se verões de imensidões profundas, Assim, Alentejos de emoções, Conjuntos de plátanos junto ao lago e cavalos que se entrelaçam sucessivamente,
- Quem és?
, talvez não consiga distinguir as tuas palavras porque dificilmente consegues formar ditongos perceptíveis, vogais e consoantes embrulhadas na boca, e depois silêncios,
- Silêncios
, abandonado, hospitais moribundos casas devolutas, farmácias abandonadas, animais moribundos e árvores inquietas, paisagens, alentejos longínquos,
- Quem és?
, não consegui esconder-me dos teus silêncios, Assim escondido e os passados que perseguem os passos, Continuadamente, Silenciosamente escondo-me,
- Esconder-me-ei?
, sim, Decididamente sim, Alentejos profundos, Cavalos brancos que trotam junto às dunas, Plátanos junto ao Mar.

Os cavalos brancos nunca te saem da cabeça. Os médicos juram que os tiveste, que ignoramos afinal uma parte de ti. Uma parte tão profunda ao ponto de não te reconhecermos naquilo que dizes. Pergunto-me se alguma vez nos reconhecemos naquilo que dizemos. Avanço. Não tenho medo. Ou pelo menos julgo não ter. Peço explicações, qualquer coisa que me alimente, qualquer coisa que me encha o punho de raiva e me faça ter a certeza que não pertencemos aqui.
Saio apressado. Tonto pelo medo. Embriagado pela estupidez com que entupo os ouvidos da mãe de palavras ocas. Pergunto-me como podemos ser credíveis quando nem em nós próprios acreditamos.
Desisto de mim. Não te ti. De ti não poderia desistir. Não sem uma explicação. Algo que termine com um simples ponto final.
- Esconder-me-ei,
escondo-me e permaneço perdido por entre a imensidão desta planície distante, hospitais moribundos e carvalhos dançando junto ao vento, Planetas inanimados e pequenas porções de lágrimas ameaçando tombar-se, aqui neste lugar recordo os cheiros que experimentei, pequenos objectos e medidas de sabores, canções poemas e outras árvores de fruto, imensas, imensidões desta planície distante, árvores inquietas que,
, se quer que lhe diga,
nem lhe chamaria inquietas porque embustes, faces obscuras e omoplatas torcidas, cancerosas, uma brisa e perguntas que sobrevoam, pequenas aeronaves de recreio, cheiros que experimentei e canções poemas árvores de fruto,
este hospital inquieto, nuvens que pairam, e,
- Assim,
pequenas porções que se recordam, territórios esquecidos, Experimento cavalos que trotam junto a mim, nuvens equecidas, ditongos com vida própria, Esqueço-me deste presente como quem se apaga de si próprio, árvores inquietas, avanço, escondo-me por entre silêncios de planetas interiores e vozes de ilusão, Carvalhos dançando junto ao vento.